A redescoberta de uma id-entidade
O Krump antes de mais nada, em seu aspecto cultural e diaspórico é uma catarse. Vamos entender esta definição; a catarse visa eliminar perturbações psíquicas, tensões e angústias, através da provocação de uma explosão emocional. É exatamente aqui que entra a “terapia” do krump como objeto e ferramenta de auto descoberta.
O krump em sua concepção tem o objetivo primordial em criar uma fuga positiva contra a violência e opressão dos jovens da central sul de Los Angeles em meio aos bairros violentos em torno da Califórnia.
Aqui vemos como ponto de partida a saga de Ceasare La Ron Willis (Tight Eyez) e Jo'Artis Ratti (Mijo), como precursores e pioneiros (OGs) dentro do processo de desenvolvimento da linguagem.
Tight Eyex costuma relatar que os jovens morriam muitas das vezes na calçada por serem até confundidos com membros de gangues, e o assédio ao sistema do narcotráfico era algo comum entre os jovens pobres que viam nesta oportunidade algo para se adquirir renda fácil em meio a dificuldade social e econômica das periferias (realidade que não difere das demais regiões populacionais periféricas). Em seu relato, Tight Eyez diz que o krump o “salvou” e levou ele a patamares e lugares que ele nunca imaginou estar, inclusive em seu relato ele afirma que muitas das vezes estando em meio a membros de gangues os próprios membros diziam, “não Chez, você aqui não, você é um cara de futuro, você tem talento com dança, e pode buscar algo melhor para você” (relato do próprio Tight Eyez).
Quando partimos deste processo diaspórico e chegamos com a transliteração da comunicação em linguagem de diferentes regiões e países, percebemos que cada lugar terá a sua identidade, isto se dá pela perspectiva de como esta realidade afeta cada indivíduo de forma interpessoal.
Países aos quais não lidam com a questão da violência urbana como guetos e favelas usarão a motivação de conflitos emocionais, políticos e pessoais para usar esta descoberta. Não estou a afirmar que o krump se baseia em “violência”, mas sim em superação.
O Krump está ligado intrinsecamente a um sentimento de realização e desafio, é uma técnica que exprime força, expurgo de frustrações e o uso de linguagens de dominância, e para dominar é necessário se impor baseado na autoconfiança, e só tem confiança quem conhece a si mesmo e sabe do que é capaz.
O krump pode expressar paixão arrebatadora, sentimentos profundos que envolvem muitas das vezes um paralelo de linguagem que outras danças abordam, porém em outros contextos e intensidades, um perfeito exemplo é o amor protetor de uma mãe em meio a uma situação caótica de resgate, ou mesmo a libertação de uma dor ou de alegria eufórica mediante a uma realização. Estes sentimentos em forma de linguagem se dão através dos níveis de intensidade (Start off, krump, buck, liveness) são zonas de intensidades que vão da abordagem mais técnica ao nível mais intenso de expressão.
É exatamente neste processo de conhecimento técnico que você tem a descoberta de si mesmo, justamente através de motivações que se personificam por um alter ego. É aqui que sua ID-entidade tomará forma e criará uma faceta de linguagem que contará uma história através de sua movimentação e linguagem.
As técnicas bases são um pano de fundo para seu vocabulário, mas existe uma diferença entre dançar com intenção krump e dançar com técnicas krump. A intenção é exatamente aquilo que te motiva a se mover e a dizer, mas sem a técnica é como um bebê chorando, expressando sentimentos porém sem verbetes ou palavras. Um bebê chora por diversas razões, e por não possuir vocábulo você verá expressões de angústia ou mesmo gestuais corporais que sinalizam que algo está sendo dito em forma de expressão. Ao passo que o bebê descobre o vocabulário linguístico as palavras são atribuídas aos estímulos, assim é o krump.
Quanto mais vocabulário você tiver, melhor você entenderá seu corpo e onde você quer chegar com aquilo que você deseja expressar. Por isso é importante uma rede de conexões, onde pessoas com diferentes experiências somarão em seu processo evolutivo, é aqui que entra a influência das famílias de krump.
A princípio as famílias foram baseadas no conceito das gangues, repletas de códigos de honra, todos conhecem o conceito oriundos dos filmes de gangues urbanas, onde o novato iniciado tem a incumbência de mostrar sua lealdade antes de passar pela iniciação dentro de um grupo específico.
Pode parecer assustador esta analogia, mas este é o contexto cultural de jovens de periferia, e estes estímulos são transformados em um contexto positivo para que eles possam se estruturar e diferir da realidade em que vivem.
O Big Homie (o grande irmão, ou irmão mais velho) é aquele que mentora o irmão mais novo, mas antes vamos compreender melhor o conceito da palavra:
Big Homie is a Slang term used in California, mainly L.A. area to call someone, a friend, dawg, loc, or gang member. (Urban Dictionary)
Isto significa que este contexto não vem do krump, muitas terminologias são oriundas de verbetes culturais e urbanos, por isto é necessário ter vivência para entender que o krump antes de mais nada é uma cultura e não algo que se aprende de forma “acadêmica” (me refiro a apenas estúdios de dança ou apenas em aulas regulares).
O krump não é apenas uma técnica de dança, ele não foi contextualizado de forma coreográfica, ele antes de mais nada é uma questão de sobrevivência, os jovens não tinham acesso às escolas de dança ou mesmo condições de pagarem aulas para se entreter e terem algo positivo para fugirem da opressão urbana, este era um dos relatos de Tight Eyez através do filme RIZE. O krump se tornou sua razão de existência, e para muitos; inclusive para ele significa algo espiritual (de fé) pois foi ai que ele entendeu que todo este processo veio para libertar ele da morte, a morte prematura que poderia levar um jovem negro de periferia a mais uma estatística de fim existência, assim como toda realidade de jovens negros oriundos de periferia.
Para este Big Homie/Grande irmão, trilhar este caminho de libertação era importante para outros jovens independente de suas condições econômicas ou étnicas, no krump não prega sexismo, apesar de ser uma dança maioritariamente focada em trejeitos masculinos de dominância, e em sua grande maioria serem homens justamente pelo seu contexto cultural…Este é um ponto delicado que merece atenção e deve ser mencionado.
O krump se compararmos com o mais primórdio das manifestações culturais do gênero humano tem a ver com dominância, e esta sempre foi uma característica masculina em sua forma mais primitiva.
O papel msculino em meio ao conceito cultural de tribo sempre foi a GUERRA, sempre foi a dominância de territórios e proteção da tribo, e isto está presente no contexto cultural de culto dentro das religiões africanas, se traçarmos um paralelo com os personagens e entidades da cultura afrodescendente você verá representações distintas de como cada divindade exerce seu papel dentro do contexto cultural.
Algumas divindades representam a colheita (fertilidade, sensualidade, amor e reprodução) outras trazem o contexto de guerra, conquista e libertação, e isto está presente na forma mais conceituada de tribos existentes no mundo, é impossível negar este contexto inicial.
Quando trazemos este paralelo para o krump percebemos que dentro das “gangues” esta necessidade de aprovação e lealdade está intrinsecamente ligada ao mundo do “Hip-Hop” (Rap), observe que não estamos referenciando o Hip Hop cultura e sim música/indústria. Basta observarmos como massivamente a indústria de entretenimento através da música tem um forte apelo e influência na cultura, e aí passamos a traçar um paralelo de como a indústria da música sempre se apoiou na influência cultural de gangues, não é preciso mencionar como estas influências alavancaram a indústria ao passo que muitos destes artistas infelizmente vieram a morrer devido a este contexto ( ex: Tupac Shakur,The Notorious B.I.G entre outros).
Esta influência de dominância vem exatamente deste contexto, trejeitos e arquétipos pré estabelecidos, então podemos alegar que o krump é uma dança masculina? Não, de forma alguma, o krump é uma dança de dominância e indefere de gênero, porém sua concepção tem esta influência cultural e contexto diaspóricos, conceituados na genética tribal que faz com que haja um apelo maior entre a comunidade masculina, vou dissertar isto de forma mais minuciosa.
A feminilidade por muito tempo foi algo inerente à figura da mulher, e o krump é rústico digamos assim, observando a postura do Hunting Posture vemos que isto tem um contexto mais viril (costas curvadas, mãos baixas em postura de briga ou segurando as calças como os rappers americanos fazem). Estes arquétipos são algo fundamentado em corpos masculinos em um contexto cultural dominante, ao passo que no universo feminino o diálogo é outro, muitas das vezes abordando a mensagem de amor, romance ou mesmo de dominância, mas com outro arquétipo, por isto a importância de se ter a referência feminina dentro da cultura para criar arquétipos que não sejam masculinizantes, é importante frisar que dominância não é um contexto masculino e sim de imposição territorial.
Sempre quando me refiro a estes contextos estou me referindo a uma escala tribal e não social moderna, lembremos que o krump é uma dança diaspórica e que sua maior referência foi feita no RIZE através dos olhos de David La Chapelle.
Por fim entendemos que todo este conceito por trás de uma roupagem cultural se mescla com novas realidades e que darão origens a novos arquétipos, e também darão vidas a novas linhagens de krump que corroboram para a descoberta de suas ID-entidades.
Por Mayckon Almeida
Referências biográficas:
Rize - por David La Chapelle.
Urban Dictionary- (vocabulário urbano).
Krump DVDs the Golden Series- Por Kokie Nassim aka the Doctor.
Pesquisa através de contos orais oriundos do Afro e história do Hip Hop.